domingo, 2 de dezembro de 2012

O PASTOR AMOROSO Alberto Caeiro



O PASTOR AMOROSO 
Alberto Caeiro


I
Quando eu não te tinha 
Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo... 
Agora amo a Natureza 
Como um monge calmo à Virgem Maria, 
Religiosamente, a meu modo, como dantes, 
Mas de outra maneira mais comovida e próxima. 
Vejo melhor os rios quando vou contigo 
Pelos campos até à beira dos rios; 
Sentado a teu lado reparando nas nuvens 
Reparo nelas melhor... 
Tu não me tiraste a Natureza... 
Tu não me mudaste a Natureza... 
Trouxeste-me a Natureza para ao pé de mim. 
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma, 
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais, 
Por tu me escolheres para te ter e te amar, 
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente 
Sobre todas as cousas. 
Não me arrependo do que fui outrora 
Porque ainda o sou. 
Só me arrependo de outrora te não ter amado. 

II 
Está alta no céu a lua e é primavera. 
Penso em ti e dentro de mim estou completo. 
Corre pelos vagos campos até mim uma brisa ligeira. 
Penso em ti, murmuro o teu nome; não sou eu: sou feliz. 
Amanhã virás, andarás comigo a colher flores pelos campos, 
E eu andarei contigo pelos campos a ver-te colher flores. 
Eu já te vejo amanhã a colher flores comigo pelos campos, 
Mas quando vieres amanhã e andares comigo realmente a colher flores, 
Isso será uma alegria e uma novidade para mim.

III 
Agora que sinto amor 
Tenho interesse nos perfumes. 
Nunca antes me interessou que uma flor tivesse cheiro. 
Agora sinto o perfume das flores como se visse uma coisa nova. 
Sei bem que elas cheiravam, como sei que existia. 
São coisas que se sabem por fora. 
Mas agora sei com a respiração da parte de trás da cabeça. 
Hoje as flores sabem-me bem num paladar que se cheira. 
Hoje às vezes acordo e cheiro antes de ver. 

IV 
Todos os dias agora acordo com alegria e pena. 
Antigamente acordava sem sensação nenhuma; acordava. 
Tenho alegria e pena porque perco o que sonho 
E posso estar na realidade onde está o que sonho. 
Não sei o que hei-de fazer das minhas sensações, 
Não sei o que hei-de ser comigo. 
Quero que ela me diga qualquer coisa para eu acordar de novo. 
Quem ama é diferente de quem é. 
É a mesma pessoa sem ninguém. 

O amor é uma companhia. 
Já não sei andar só pelos caminhos, 
Porque já não posso andar só. 
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa 
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo. 
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo. 
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar. 
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas. 
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela. 
Todo eu sou qualquer força que me abandona. 
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.

VI 
Passei toda a noite, sem saber dormir, vendo sem espaço a figura dela 
E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela. 
Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala, 
E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança. 
Amar é pensar. 
E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela. 
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela. 
Tenho uma grande distracção animada. 
Quando desejo encontrá-la, 
Quase que prefiro não a encontrar, 
Para não ter que a deixar depois. 
E prefiro pensar dela, porque dela como é tenho qualquer medo. 
Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero. 
Quero só pensar ela. 
Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar.

VII 
Talvez quem vê bem não sirva para sentir 
E não agrade por estar muito antes das maneiras. 
É preciso ter modos para todas as cousas, 
E cada cousa tem o seu modo, e o amor também. 
Quem tem o modo de ver os campos pelas ervas 
Não deve ter a cegueira que faz fazer sentir. 
Amei, e não fui amado, o que só vi no fim, 
Porque não se é amado como se nasce mas como acontece. 
Ela continua tão bonita de cabelo e boca como dantes, 
E eu continuo como era dantes, sozinho no campo. 
Como se tivesse estado de cabeça baixa, 
Penso isto, e fico de cabeça alta 
E o dourado do sol seca as lágrimas pequenas que não posso deixar de ter. 
Como o campo é grande e o amor pequeno! 
Olho, e esqueço, como o mundo enterra e as árvores se despem. 
Eu não sei falar porque estou a sentir. 
Estou a escutar a minha voz como se fosse de outra pessoa, 
E a minha voz fala dela como se ela é que falasse. 
Tem o cabelo de um louro amarelo de trigo ao sol claro, 
E a boca quando fala diz cousas que não há nas palavras. 
Sorri, e os dentes são limpos como pedras do rio. 

VIII 
O pastor amoroso perdeu o cajado, 
E as ovelhas tresmalharam-se pela encosta, 
E, de tanto pensar, nem tocou a flauta que trouxe para tocar. 
Ninguém lhe apareceu ou desapareceu... Nunca mais encontrou o cajado. 
Outros, praguejando contra ele, recolheram-lhe as ovelhas. 
Ninguém o tinha amado, afinal. 
Quando se ergueu da encosta e da verdade falsa, viu tudo: 
Os grandes vales cheios dos mesmos vários verdes de sempre, 
As grandes montanhas longe, mais reais que qualquer sentimento, 
A realidade toda, com o céu e o ar e os campos que existem, 
E sentiu que de novo o ar lhe abria, mas com dor, uma liberdade no peito. 









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